Alguns insights sobre a estrutura de Anima
2019. Netflix. Dirigido por Paul Thomas Anderson. Coreografado por Damien Jalet. Cinematografia de Darius Khondji. Montado por Andy Jurgensen. Com Thom Yorke, Dajana Roncione.

Anima é um curta lançado em 2019, e disponível na Netflix, que foi dirigido por Paul Thomas Anderson e coreografado por Damien Jalet a partir do álbum de mesmo nome do músico, cantor e compositor Thom Yorke (do Radiohead); nesse sentido, Anima é uma espécie de videoclipe do álbum Anima. Yorke, inclusive, surge aqui no papel do que seria o protagonista da história. Basicamente, Anima conta a história de um homem (Yorke) que sai atrás de uma mulher (Dajana Roncione) para devolver uma maleta que ela esqueceu num metrô.
Nessa espécie de odisseia, o curta flerta com o experimental por meio de uma abordagem surrealista e visualmente elaborada (afinal, é Paul Thomas Anderson na direção). Meu objetivo, nesse texto, é tentar propor alguma interpretação para esse curta, tentando entender, no processo, um pouco dos recursos que Paul Thomas Anderson, Damien Jalet e Thom Yorke usam para construir essa que, para mim, é uma das melhores experiências audiovisuais do ano.
Comecemos pelo seguinte: David Bordwell, em Arte do Cinema, propõe que prestemos atenção, ao ler um filme, em cinco aspectos de sua estrutura, que são: similaridade e repetição, diferença e variação, desenvolvimento, unidade e não unidade, função. Por servirem como elementos coesivos, esses cinco aspectos ajudariam, de acordo com Bordwell, a encontrar e sistematizar uma leitura de um filme. Essa leitura envolveria, também, alguns sentidos diferentes, que dizem respeito a níveis diferentes de leituras. Haveria, segundo o teórico, os sentidos referencial, explícito, implícito e sintomático. Vejamos, então, um por um desses elementos em Anima.
SIMILARIDADE E REPETIÇÃO
Similaridade e repetição são estruturas que vão garantindo, justo por aparecerem mais de uma vez, uma espécie de coesão ao filme. É ao reconhecer padrões, diz Bordwell, que vamos sendo capazes de comparar uma coisa com a outra, que já havíamos visto antes. Mais que isso, o teórico ainda afirma que, sem similaridade e repetição, seríamos incapazes de compreender um filme.
Um exemplo de similaridade e repetição, em Anima, seria o protagonista começar e terminar o filme dentro de um transporte coletivo, por exemplo. Quando chegamos na última cena, e o personagem de Yorke se senta no banco e adormece, temos a impressão de que já havíamos visto isso em algum lugar. E já havíamos, no começo, quando ele está sentado dentro de um metrô, mais ou menos adormecido.


No caso da cena do metrô, a primeira cena, temos outro exemplo de similaridade e repetição: a coreografia. Essa coreografia, uma versão estilizada dos movimentos que a gente faz quando pega no sono sentado e acorda no susto, é brilhantemente construída por Damien Jalet (com quem Yorke já trabalhara em Suspiria) e executada por todos os personagens que estão no metrô, estejam eles sentados ou em pé. Como todos fazem basicamente os mesmos movimentos, o resultado é um grupo homogêneo, um coletivo. Temos a impressão de que todos são iguais. Essa impressão é, inclusive, realçada pelas roupas, todas de cores escuras e parecidas, passando essa impressão de que todos vestem um uniforme; o figurino, inclusive, seria outro exemplo de similaridade e repetição.

É possível notar, na figura, a semelhança na posição das mãos, no pescoço levemente inclinado, nos olhos fechados. Além disso, todas as pessoas do metrô vestem roupas com tons mais escuros; um verde mais escuro, um azul mais escuro, um cinza, um preto. Esses elementos (coreografia e figurino) estabelecem o padrão (similaridade e repetição), que contribui para criar esse senso de unidade que passa essa mensagem: todas as pessoas são mais ou menos iguais e todas essas pessoas seguem uma rotina mais ou menos igual.
A dança, inclusive, é aqui sempre um ótimo exemplo de similaridades e repetições porque é, em quase todos os casos desse curta, executada por diversas pessoas com um figurino quase que igual, o que cria, em vários momentos de Anima, essa sensação de que existe um mais ou menos amontoado de gente sem personalidade, sem identidade. Ou seja, por fora, somos todos "iguais". Nosso corpo é uma máquina, e nossa rotina é mecânica (mais sobre isso no final desse texto). É um coletivo que funciona maquinalmente (para ser bem banderiano).
Um outro momento, aliás, em que essa unidade fica bastante evidente é a cena em que o protagonista deve passar, para pegar a maleta, por uma fileira de pessoas que avançam mais ou menos agachadas, dando saltos, para trás e para frente. Acontece que essa fileira se encontra em posição oposta à do protagonista, que não dança, mas avança. Ou seja, temos um grupo de pessoas executando um mesmo movimento (semelhança) em contraste a uma pessoa que não está dançando, mas que vai se esforçar para fazer parte da dinâmica, tentando copiar os passos do grupo (diferença). E essa diferença vai nos levar ao próximo ponto desse texto.

DIFERENÇA E VARIAÇÃO
Para Bordwell, se similaridade e repetição são responsáveis por estabelecer um padrão, sem o qual o espectador não conseguiria acompanhar um filme, apenas similaridade e repetição acabariam por tornar um filme, no mínio, maçante. É preciso, também, de quebras no padrão estabelecido, é preciso de diferença e variação. Vejamos três exemplos disso.
No primeiro deles, as diferenças e variações entre começo/final do curta seriam, novamente, interessantes de comentar. Se há similaridade e repetição na ideia de que os personagens começam e terminam sentados, dormindo, em um transporte coletivo, há diferença e variação não só na natureza do veículo, um metrô no começo e um trem no final, mas também no tempo, anoitecendo no começo e amanhecendo no final. Há diferença, também, no fato de que o metrô está no subsolo e o trem, na superfície. E há diferença, finalmente, no enquadramento, uma vez que Tom Yorke começa o curta à esquerda do quadro, voltado para a direita, mas termina mais ao centro do quadro, voltado para a esquerda.


Acordar/Dormir; Metrô/Trem; Esquerda/Direita; Acordando/Dormindo; Noite/Dia; são todos pares opostos que querem nos dizer algo. Podemos especular ao menos duas coisas aqui. A primeira é que, mesmo parecidas, essas duas cenas (a inicial e a final) apontam uma mudança pela qual o personagem passou a partir da experiência que ele teve. Já a segunda é de que, ao contrário, mesmo diferentes, essas duas cenas são parecidas o suficiente para nos mostrar que, no final das contas, o personagem se encontrará na mesma situação em que estava no início. Voltaremos a isso mais tarde.
Um segundo exemplo em que diferença e variação surgem se encontra na própria estruturação do curta. Apesar de ser considerado experimental, é possível fazer um esforço e dividir Anima em uma estrutura em três atos e identificar a narrativa clássica de um protagonista que, após um incidente, sai em busca de um objetivo que vai lhe ensinar alguma coisa (pensando aqui no que Robert McKee nos ensina sobre como uma história clássica deve ser). Esses atos estariam marcados, sonoramente, por músicas diferentes. São três as músicas presentes no curta, presentes no álbum de Yorke, organizadas nessa ordem: Not the News, Traffic e Dawn Chorus. Nesse sentido, se a música muda (ou está para mudar), então o ato muda (ou está para mudar).
Por fim, um terceiro exemplo de diferença e variação seria os dois personagens centrais da narrativa. Esses dois personagens centrais são diferentes exatamente porque um deles é homem e o outro é uma mulher. Nós poderíamos nos perguntar se existe um porquê de essa diferença ser tão importante para a história. E a resposta seria: sim. Essa importância tem a ver, inclusive e como veremos logo mais, com o próprio título do curta, Anima, que aponta justo para essa diferença entre masculino/feminino; animus/anima, respectivamente, na teoria jungiana, seriam o equivalente ao masculino e ao feminino que cada indivíduo contém e que se complementariam e se contrastariam dentro de cada um de nós. Nesse sentido, ambos os personagens funcionariam (mas mais sobre isso em funções) uma espécie de Ying e Yang dentro da narrativa que Thom Yorke e Paul Thomas Anderson estariam nos contando.

A similaridade e repetição e a diferença e variação, quando juntas, dão ao espectador não só os padrões da forma, mas também os desvios, e é a partir disso que a história que Paul Thomas Anderson e Thom Yorke contam se desenvolve.
DESENVOLVIMENTO
O desenvolvimento, segundo Bordwell, estaria nessa noção de que as diferenças e variações por entre as similaridades e repetições fariam um filme avançar, ou se desenvolver, uma vez que é a partir do diferente que o protagonista mudaria de uma situação para outra.
Já dissemos que Anima pode ser mais ou menos fragmentado em três atos (embora não haja um limite entre eles muito preciso, como já dissemos):
i) Protagonista acorda, percebe a mulher, vê que ela esqueceu a maleta no metrô, pega a maleta e passa pela roleta para ir atrás dela; metrô/subsolo; música: Not the News. Personagem acompanha a coreografia.

ii) Protagonista sai em busca pela dona da maleta, o que gera uma série de situações completamente surreais pelas quais ele deve passar; superfície; música: Traffic. Personagem não acompanha a coreografia.

iii) O casal dança junto, até que entram no trem e o protagonista dorme novamente; superfície/trem; música: Dawn Chorus. Personagem acompanha a coreografia.

Como é possível perceber, esses supostos atos são marcados não apenas pela mudança de música, mas também pela mudança de espaço e pela mudança do evento que o espectador acompanha. Isto posto, podemos afirmar: as similaridades e repetições delineiam os atos como um todo coerente; as diferenças e variações fazem com que avançamos entre os atos, ou seja, causam o desenvolvimento da narrativa. Podemos nos perguntar, por exemplo, o que houve para que o protagonista deixasse de fazer os mesmos movimentos que todos os outros personagens do metrô. Por que ele decidiu mudar, se começamos o filme com ele acompanhando o grupo? A resposta é que, ao ver a mulher, e ao ver que a mulher esqueceu a maleta, o protagonista escolhe fazer algo diferente. Isso seria, poderíamos talvez dizer, a função da maleta.
FUNÇÃO
Basicamente, a função é para que as coisas servem. Bordwell nos diz que tudo aquilo que vemos pode ter um propósito para o filme. De mise-en-scène, que envolve planos (enquadramentos, movimentos de câmera, duração do plano), figurinos, cinematografia, som, movimentos dos personagens, cenários em que esses personagens estão, até a narrativa em si. Para que serve o Phantom Ride (ou Panorama) no começo do filme? Para que servem as coreografias? Para que serve a maleta? Para que servem os figurinos extremamente parecidos? Para que serve o contraste entre o branco da lateral do metrô com o vermelho dos canos? Por que o protagonista anda em sentido contrário ao dos outros personagens assim que sai do metrô? Para que servem os quadros?
No caso da Phantom Ride (ou Panorama) que inicia o curta, podemos especular, por exemplo, a seguinte situação: se esse recurso implica um movimento invisível, movimento do qual o espectador não sabe a origem, então a pergunta que se faz é: qual é a origem do movimento. Oras, a pergunta "o que move" é basicamente a pergunta "o que anima", já que animar é …dar movimento. Nesse sentido, o primeiro plano é, essencialmente, o plano que vai dar o mote para todo o questionamento do curta: o que é que nos dá o movimento? Anima é, também, a alma que faz com que o corpo se mova. Esse movimento é, também, uma das funções das várias danças que acompanhamos pelo curta. A dança no metrô, por exemplo, é o movimento cotidiano estilizado. A repetição desse movimento é o que o torna mecânico, rotineiro, e é essa estilização que cria essa imagem de que todos ali se movem iguais, estão presos num universo mecânico e rotineiro.
A maleta, nesse sentido, pode funcionar como a extensão da mulher que o personagem de Yorke percebe no metrô. Esse objeto é a conexão entre ambos, antes do encontro ao final do segundo ato. É nessa maleta que ele se agarra na esperança de encontrar a mulher. Nesse sentido, a função da maleta parece ser impulsionar o protagonista em sua jornada. E é possível fazer isso, na verdade, para todos os elementos de Anima.
Gostaria de gastar um pouco mais de linhas nessa ideia de origem do movimento. Isso porque, a partir do momento em que assumimos que a alma, que é o que movimenta o corpo, não é visível, assumimos também que essa jornada em busca da alma é menos física e mais, vamos dizer assim, virtual. Ela ocorreria, então, num plano surreal, da consciência. Isso pode ser sustentado pelo curta a partir da insinuação de sonolência do personagem, que se encontra, no início do curta, em um estado nem completamente acordado, nem completamente adormecido. Esse estado seria o responsável, portanto, por indeterminar se acompanhamos algo onírico ou real no segundo ato. A jornada seria, nesse caso, interna. Devemos lembrar, também, que a dupla anima/animus evoca um aspecto inconsciente, na psicologia jungiana; ou seja, anima seria o feminino presente no inconsciente do protagonista. Que se personifica, evidentemente, na personagem com quem ele se envolve.
UNIDADE E NÃO UNIDADE
Outro elemento apresentado por Bordwell seria o da unidade e não unidade, que tem a ver com o todo coerente que surge se a coesão entre as partes de um filme estiverem bem estruturadas. Um filme com unidade seria um filme que, digamos assim, não deixa pontas soltas. O contraste em Anima é visível: há unidade num sentido global, mesmo que não haja unidade entre as partes. O motivo para isso pode ser, por exemplo, o fato de que estamos diante de um filme surreal, que flerta justo com a falta de coerência entre as partes. Por exemplo, como é possível que o personagem seja arrastado? Ou então, como é possível que a passagem subterrânea/superfície, ou seja, que a mudança de espaço ocorra com um corte brusco envolvendo o salto por uma catraca?

A falta de unidade entre as partes cria um estranhamento a partir do qual o mundo onírico, surreal, se estabelece com uma unidade impressionante.
ALGUNS SENTIDOS POSSÍVEIS
Além da similaridade e repetição, da diferença e variação, do desenvolvimento, da unidade e não unidade, e da função, Bordwell também nos aponta quatro níveis diferentes de possíveis sentidos aos quais uma interpretação pode chegar. São eles os sentidos: referencial, explícito, implícito e sintomático.
Esses sentidos vão do mais concreto para o mais abstrato, mais particular e mais global, vamos dizer assim, da leitura que uma obra pode ter. Mas quais seriam esses sentidos em uma das várias leituras possíveis de Anima? Tendo em mente que o filme é abstrato e surreal, e bastante metafórico, é evidente que são várias as interpretações possíveis. Escolho, para este texto, quatro delas como as minhas, tomando como base tudo o que foi discutido até agora. Explicitar cada uma delas é o que tentarei fazer daqui para frente.
O sentido referencial seria o mais imediato, quer dizer, seria o de que Anima trata da história de um homem que vê uma mulher esquecendo uma maleta ao sair de um metrô. Ele pega essa maleta e vai atrás para devolvê-la à dona. Ao se encontrarem, ambos acabam aproveitando a companhia um do outro.
Esse sentido referencial, aliado a alguns dos recursos que apresentei nesse texto, abre a possibilidade para chegar a um sentido explícito, não completamente literal, mas não tão abstrato. Nesse caso, Anima seria a história de um homem que deve decidir sair ou não de sua rotina para ir em busca de experienciar seus sentimentos por uma mulher. Por sua vez, se fizéssemos uma investida em uma interpretação mais abstrata, teríamos o sentido implícito de que Anima seria a história de uma pessoa que deve decidir entre sair e continuar dentro da lógica rotineira de um mundo em que não há espaço para o indivíduo e para as relações entre indivíduos; essa escolha, entretanto, envolveria a necessidade de que essa pessoa investigasse o que a define como sujeito.
Finalmente, esse sentido implícito nos leva ao último nível proposto por Bordwell, que é o sentido sintomático. Nesse nível, poderíamos propor a interpretação de que Anima é um ensaio sobre a alma e sobre o corpo, e sobre o que move nosso corpo, sobre o que nos impulsiona a tomar as decisões que nós tomamos, a agir, e sobre as dificuldades que temos em lidar com essas escolhas porque elas envolvem, essencialmente, um constante conflito entre o desejo (do indíviduo), a repressão desse desejo (da sociedade e do indivíduo) e a luta para libertar esse desejo (entre indivíduo e si próprio, entre indivíduo e sociedade), que é, em última instância, o de sentir (representado, aqui, pelo amor).
Nesse caso, o que Anima defende, ao assumir o contraste masculino/feminino de uma suposta história romântica em um universo onírico e subjetivo, é a natureza da alma, dos contrastes entre corpo/mente, entre sociedade/indivíduo; Anima nos mostra exatamente o que deveria ser aquilo que nos dá a alma, que nos dá o ânimo, ou seja, que impulsiona o movimento e dá a vontade de viver; nos mostra, enfim, o como esse sentir passa pela sensação de completude que experimentamos ao nos relacionarmos com os outros.